Os mistérios de Porto Alegre 

Moacyr Scliar

Moacyr Scliar

Porto-alegrense de nascimento (figura rara; como em outras cidades brasileiras, a população de Porto Alegre é formada principalmente por gente vinda do interior) e um apaixonado pela capital gaúcha, sempre fiz dela temas de artigos e crônicas  —  além de  cenário para ficção. Há alguns anos, a RBS pediu-me uma coletânea de meus textos sobre o tema. A organização não deu muito trabalho; a escolha do título, sim. Acabei optando por Os mistérios de Porto Alegre. No começo, nem sabia bem o porquê, mas ao longo dos anos fui concluindo que a escolha até podia ser fruto de uma súbita, e  bem-vinda, intuição.

Porto Alegre  é uma cidade misteriosa. Não no sentido gótico, sinistro, do termo. Os mistérios de Porto Alegre são, bem, mistérios  porto-alegrenses: pequenos, encantadores mistérios. São historinhas, são lugares, é o jeito de ser de uma cidade fundada por sessenta  casais açorianos —  quando? Bem, aí está o primeiro mistério. Durante décadas, discutiu-se o ano da fundação de Porto Alegre,  Falava-se em 1744, falava-se em 1772. Essa última data acabou prevalecendo, acho que mais por exaustão do que por qualquer outro motivo.

Os açorianos inspiraram o primeiro nome da cidade, Porto dos  Casais. Porto, porque a cidade fica às margens do Guaíba (outra discussão: o Guaíba é um rio? É um lago, formado pela confluência  dos cinco rios que nele desembocam? E um estuário?). O rio condiciona muito a vida porto-alegrense. 

Pelo rio chegavam os pequenos  navios, trazendo os emigrantes (esta é uma cidade de alemães, italianos, de eslavos) ou as frutas do vale do Taquari. O rio substitui o mar que está longe; e, finalmente, o rio é responsável pelo panorama que se avista dos numerosos morros sobre os  quais se derrama a idade, panorama que  é particularmente bonito ao crepúsculo, quando o sol incendeia as águas e o céu  —  fazendo com que Mario Quintana escrevesse, extasiado: 

“Céus de Porto Alegre, como farei para levar-vos para o céu?”.

A beleza misteriosa de Porto Alegre. Esta não é uma idade que se desvenda de súbito ao visitante, que se revela numa pujante beleza natural, como o Rio ou Salvador. Porto Alegre a gente tem de descobrir aos poucos; é uma metrópole, sim, mas uma metrópole provinciana, tímida. Começa-se pelo centro, pela Rua da Praia, naturalmente. Depois caminha-se pela Praça da Alfândega e os estranhos, fascinantes prédios que a guarnecem. O art-noveau porto-alegrense foi obra de construtores alemães e resultou de um insólito sincretismo,  uma combinação de elementos europeus e brasileiros. Aliás, essa combinação pode ser vista em outros lugares. Na Biblioteca Pública, há esfinges e arabescos, símbolos positivistas e ferro trabalhado. No Parque Farroupilha, inaugurado em 1935 para comemorar o centenário da Guerra dos Farrapos, há um templo japonês em miniatura, um pseudo vulcão, um minizôo. 

Essa mistura chega às raias do  kitsch,  mas fala muito de Porto Alegre. Como falam seus bairros: o Alto da Bronze, com seus casarões antigos; Moinhos de Vento, com suas residências aristocráticas; Petrópolis, o bairro da classe média; e o Bom Fim, onde nasci e me criei, e que era, em minha infância, uma aldeia judaica da Europa Oriental perdida, como uma espécie de Chinatown, no meio da cidade: as ruas cheias de gente, os vendedores ambulantes apregoando suas mercadorias, as gordas matronas falando mal da vida alheia ou correndo atrás de seus magros rebentos com um prato de comida. E grande parte dos mistérios de Porto Alegre está no seu imaginário, nas histórias que fizeram o encanto da minha meninice, embora muitas delas façam parte deste inconsciente coletivo que parece ser comum a muitas cidades. 

Assim, por exemplo, a lenda do cabaré das normalistas. Diziam que as comportadas moças, saindo da escola onde estudavam, não iam para casa, mas seguiam para um misterioso cabaré onde mudavam de roupa e, muito maquiadas, entregavam-se por inteiro à sua lascívia. O endereço desse excitante  estabelecimento era um segredo ao alcance apenas de uns poucos eleitos. Falava-se de um ou dois choferes de praça que, por muito dinheiro, conduziriam até lá os seus passageiros. Confesso que nem tentei, mesmo porque bordéis não faltavam à cidade; num estado povoado (ao menos no início de sua história) por homens que conquistaram a terra aos espanhóis, havia falta de mulheres, uma necessidade suprida pelos cabarés e pelas casas de tolerância.

Descobrir os mistérios de Porto Alegre: eis a tarefa que me propus, desde a infância, e que não concluí – e nem vou concluir. Diferente  de Teseu, e à semelhança de Walter Benjamin, gosto de me perder nos labirintos da memória e da fantasia, que, em minha imaginação, se confundem com as ruas de Porto Alegre. E, sem pressa de chegar, eu os percorro quase que diariamente. Guia-me não o fio de Ariadne que socorreu o herói grego, mas o fio da emoção, que nunca se desfaz.