Bairro Tristeza

Artigo de  Janete da Rocha Machado1  – 1º Colóquio Internacional de História Cultural da Cidade, de 9 a 11 de março de 2015

INTRODUÇÃO

No início do século dezenove, as terras onde hoje está o bairro Tristeza, Zona Sul de Porto Alegre, faziam parte de uma imensa zona rural da cidade. Originária da primeira sesmaria (século dezoito), o local se configurou em grandes extensões de terras, em cujas fazendas se cultivavam arroz, milho e frutas, além da criação de gado. Isso só era possível devido à irrigação pelos arroios Capivara, Cavalhada e Salso, os quais proporcionavam fertilidade à região. Eram os limites dessas terras produtivas e apresentavam águas límpidas, perfeitas para o uso. Assim como eram limpas também as águas do rio, o que motivou, tempos mais tarde, o uso para o lazer e o veraneio.

Em torno de 1870, iniciaram os primeiros assentamentos de colonos italianos, atraídos pela fartura e pela fertilidade das terras onde hoje se situa o bairro Tristeza. Na virada do século vinte, vieram os alemães, cujo espírito empreendedor ajudou a desenvolver o arrabalde. As belezas do local e as águas limpas do Guaíba2 fizeram a população buscar as praias da Tristeza para lazer e descanso, pois, conforme Olintho Sanmartin, “a população da cidade procurava recrear-se nos dias de descanso em arrabaldes aprazíveis” (1969, P. 63), como os da Zona Sul da cidade. “A Tristeza sempre foi o alegre arrabalde, para onde se deslocava a nata da sociedade porto-alegrense, a fim de curtir no verão, o banho reanimador do Guaíba” (PELLIN, 1996, P. 129).

Outro fator impulsionador do desenvolvimento da Tristeza e facilitador para os grupos que buscavam o lazer foi a construção da Estrada de Ferro do Riacho, uma ferrovia municipal que atendia ao deslocamento da população do Centro até o arrabalde. “Com a ferrovia, a localidade teve um crescimento acentuado, não só durante todo o tempo em que ela operou, mas também ainda alguns anos após o encerramento de suas atividades” (HUYER, 2010, P. 131). Essa facilidade de mobilidade para a região, proporcionada pela linha férrea, possibilitou que grupos pudessem adquirir propriedades na faixa de terra entre a estrada principal e o Guaíba, instalando no local, casas de veraneio, vivendas luxuosas ou simples chalés à beira rio.

Junto com o trem, uma série de outros serviços se fez necessária devido ao movimento intensificado na região. A construção de um trapiche na beira da praia da Pedra Redonda, um dos balneários da Tristeza, facilitou a chegada dos veranistas que vinham pelo rio, pois o transporte fluvial foi bastante utilizado. Ficaram conhecidos, na época, os vapores Guaporé, Bubi e Santa Cruz, embarcações que traziam pelo rio, famílias endinheiradas até a Zona Sul de Porto Alegre.

As melhorias na Tristeza incluíam também a instalação de armazéns, bares, hotéis, pensões, padarias, açougues, comércio varejista, cinema e clubes. A maior parte desses serviços foi empreendida por grupos de alemães que se fixaram no bairro, a partir do final do século dezenove. O grande afluxo de veranistas desenvolveu também a vida social e cultural do balneário, pois com eles, vieram novas formas de recreação como bailes, saraus, piqueniques, serenatas, festas populares, entre outros.

Ainda que não se evidencie um rigor crítico em seus apontamentos sobre o bairro, Olyntho Sanmartin, após uma profunda pesquisa histórica, evoca de forma romanceada cenários dos balneários da Tristeza em sua fase mais movimentada, ou seja, nas primeiras décadas do século vinte:

Singular encanto apresentava, sem mencionar as ruas transversais, a zona ribeirinha protegida pela sombra amena de árvores frondejantes e de jardins caprichosamente relvados. O perfume de resinas e dos vegetais circundantes, em pleno verão, com tardes sonolentas ainda sob os reflexos do sol merídio e mais o canto das cigarras e de pássaros mudando de pouso, todo esse quadro de uma pastoral de sonhos, propiciava aos moradores ocasionais, um repouso de plena quietude que só ao fim do dia despertava para o buliço da vida social despreocupada (1969, P. 63).

Para este autor e todos aqueles que aproveitavam as águas do Guaíba, o bairro Tristeza de outrora era um singular recanto, um local desejado e jamais esquecido.

ASSUNÇÃO, CONCEIÇÃO E PEDRA REDONDA: AS VILAS BALNEÁRIAS DA TRISTEZA

O bairro Tristeza foi o primeiro a atrair veranistas para as temporadas de verão e férias. O local, à margem esquerda do Guaíba, viveu, a partir do final do século dezenove, um desenvolvimento econômico motivado pela procura de um grande número de famílias, muitas delas oriundas de imigrantes alemães. Esses grupos buscavam o descanso e o lazer à beira do Guaíba e, para isso, mantinham chácaras e finas residências para uso nos períodos de férias e finais de semana.

As denominadas Vilas Balneárias, entre elas, Assunção, Conceição e Pedra Redonda que integravam o bairro Tristeza, também foram muito procuradas neste período, pois entre as praias do Guaíba, eram as mais próximas do centro da cidade. Águas limpas, disponibilidade de terras, e, principalmente, a possibilidade de disporem de um meio de transporte seguro e eficiente (o trem) foram fatores decisivos para esta elite, composta de imigrantes, escolherem o arrabalde como refúgio.

Desta forma, foram-se expandindo os loteamentos e as construções na região. Empreendedores do ramo da construção civil ergueram belas vivendas de veraneio próximas ao lago, as quais serviam para bem receber seus proprietários nos períodos de férias. Assim, nos meses de verão, a Tristeza estava sempre repleta de gente: eram os moradores ocasionais que chegavam para aproveitar a estação calmosa.

Os estudos de Artur Wilkoszynski (1991, p. 8) sobre a ocupação da região da Tristeza identificam que havia uma divisão espacial marcada pela linha do trem. Essa linha demarcatória separava a população da região conforme os diferentes usos do local. Assim, as áreas residenciais da elite, ou seja, espaços onde se erguiam belos palacetes situavam-se na faixa de terras ao longo da orla e próximas ao trem.

Estrada de Ferro da Tristeza
O Trem da Tristeza

Já as moradias mais simples, ou seja, aquelas cujos proprietários eram colonos e agricultores permaneciam do outro lado da ferrovia, no interior do arrabalde. Para esse autor, “as atividades de comércio, serviços e lazer estabeleciam-se estrategicamente entre estas duas regiões, próximas à estação do trem e ao longo da linha que havia sido prolongada até a praia da Pedra Redonda” (1991, p. 8). E isso, com o tempo, foi reforçando a ideia do uso da região para o lazer e o veraneio de famílias pertencentes a uma classe privilegiada da sociedade porto alegrense. Três locais, especialmente, chamaram a atenção dessa elite porto-alegrense: as vilas balneárias Assunção, Conceição e Pedra Redonda.

A primeira vila balneária a atrair o veranista foi a Assunção, nomeada assim em homenagem ao pioneiro na região, José Joaquim Assumpção. Nascido em 21 de abril de 1844, Assumpção adquiriu em 1888 um lote de terras de cento e trinta hectares situado onde é hoje o bairro Vila Assunção. Na ocasião da compra das terras, a chácara já possuía uma charqueada e um trapiche que servia para o escoamento da produção até o centro da cidade.

Com o tempo, Assumpção montou uma olaria movida a vapor, novidade para a época, visto que todas as demais olarias dependiam da tração animal. As atividades da chácara também incluíam uma fábrica de destilaria de álcool, que ficava na beira do rio, próxima à charqueada e a exploração de pedras. “Além da charqueada, olaria e um pouco de plantação e criação, Assumpção ainda explorava pedreiras, fornecendo pedras para a construção do cais do porto” (FLORES, 1979, p. 105).

Com a Revolução de 1893, Assumpção, devido às suas tendências federalistas, precisou se refugiar no Uruguai, lá ficando alguns anos. Segundo Flores, criou-se uma questão diplomática nas terras então abandonadas de Assumpção. Questões que envolviam o governo do Estado e a Estrada de Ferro do Riacho.

Até a morte de José Joaquim Assumpção (1918) continuava indivisa sua propriedade. Somente na década de 1930, sua viúva Filisbina Antunes empreendeu a partilha das terras, negociando uma parte com a firma Di Primio Beck. Conforme Hilda A. H. Flores: “a viúva entrava com o imóvel e a firma com as despesas de loteamento e urbanização, o que foi feito em 1937” (1979, p. 38). Assim surgiu a Vila Assunção, o bairro balneário mais aristocrático de Porto Alegre.

Seguindo uma concepção de cidade jardim inspirada nos preceitos de urbanização de Ebenezer Howard3 (1850 – 1928), o local deveria oferecer as vantagens e os serviços de um grande centro associados à beleza e à tranquilidade da vida no campo. E foi essa a ideia utilizada para a comercialização dos primeiros lotes do novo bairro que surgia.

A vista amurada e os largos passeios com praia de que falava o anúncio da década de 1930 foram itens que ajudaram a comercializar os lotes disponibilizados pela empresa loteadora. Para os novos moradores, o planejamento do novo bairro associado à natureza exuberante fez da Assunção o lugar certo para residir. “Lugar simpático, cheio de vivendas, na sua maioria rodeados de verdejantes jardins e sombrias árvores, é a Vila Assunção, um sítio de descanso às portas da capital” (SANHUDO, 1975, P. 185).

Assim, a proposta do bairro cidade jardim não só atraiu novos moradores, mas também possibilitou a expansão ocupacional da orla sul da cidade. Surgem então outros loteamentos à beira rio, entre eles, a Vila Conceição, local escolhido não só para o lazer, mas também para residência da primeira doutora em História do Rio Grande do Sul, a professora Helga Piccolo Landgraf.

A Vila Conceição está situada em uma elevação, próxima ao Morro do Osso e às margens do Guaíba. Apesar de possuir apenas uma pequena prainha, no passado foi zona de veraneio de imigrantes e também daqueles que não podiam se deslocar até o litoral. Para Sanhudo, a Conceição era uma praia de pouco mais de cinquenta metros de extensão, mas que atraía pelas belezas do lugar. “Junto às margens do rio, temos uma pequena praia pública, com raros trechos de areia e crivada de pedras. É um dos lugares mais aprazíveis e silenciosos da cidade” (1975, p. 18).

As origens do nome do novo bairro remontam à década de 1930, quando o loteamento foi idealizado e projetado por Antônio Monteiro Martinez. Em homenagem a sua esposa, Zulmira Martinez, que era devota de Nossa Senhora da Conceição, o local foi batizado de Vila Conceição. Antes disso, a região era considerada parte da Tristeza, e sua área era ocupada por uma chácara de propriedade de José da Silva Guimarães.

O loteamento da Vila Conceição foi analisado pelo arquiteto André Huyer em sua dissertação de mestrado. Segundo Huyer:

A gleba localizada entre o loteamento Praia Nova e a Tristeza foi um dos primeiros, recebendo o nome de Balneário Villa Conceição. O acesso a ele se dava por um viaduto construído sobre o cânion da ferrovia do Riacho. Ao contrário do traçado usualmente empregado nos arruamentos de então, esse tinha as ruas curvilíneas, adaptadas à topografia acidentada do sítio. Também tinha outros aspectos diferenciados, como várias áreas para praças, e uma área de uso comum no miolo da quadra central, sendo evidente a influência do conceito de cidade-jardim. Estendia-se do leito da ferrovia até a margem do Guaíba, onde foi construída uma escadaria para acesso à praia (2010, p. 131).

Para viabilizar o empreendimento, Antônio Martinez precisou adquirir outros terrenos próximos à antiga chácara de José da Silva Guimarães Tristeza. Para Flores, a maioria dos compradores dos lotes era de origem italiana, porém, para a historiadora Helga Piccolo4 , moradora do local desde a década de 1940, os grupos eram, na sua maioria, de origem alemã que vieram em busca de lazer e descanso proporcionados pela proximidade com o Guaíba:

Quando eu vim para cá em 1945, de cem famílias aqui na Conceição, noventa eram alemãs. Porque os italianos, na realidade, se instalaram do outro lado da avenida. Então era uma coisa interessante: os alemães do lado de cá, do lado do rio, e os italianos do lado de lá, principalmente porque eles eram agricultores (PICCOLO, 2013).

Para Piccolo, entretanto, a ideia de veraneio não está muito associada ao novo bairro, pois a maioria das famílias compraram seus terrenos nas décadas de 1930 e 1940 para residir o ano todo e não apenas para o verão, como era comum em outros balneários da Zona Sul. Ainda assim, muitas dessas famílias também usavam o rio para banhos, principalmente na “Prainha da Conceição”. Segundo Helga Landgraf Piccolo:

 As residências eram de veraneio e de moradia. Não havia ruas à beira do rio. Por isso a região não era local de veraneio como Ipanema e Pedra Redonda. Mas lá embaixo, perto do rio eram mais de veraneio. Lá tem a famosa prainha da Conceição. Nós tomávamos banho nessa prainha. Principalmente porque aqui na nossa região tinha muitos momentos de falta de água e nós descíamos a rua e íamos de toalha e sabonete, todos juntos tomar banho na praia. A água do Guaíba era limpa. Depois é que ela ficou poluída. A Prainha era também lugar de namoro. A turma namorava lá à noite. Ela é conhecida também por isso (PICCOLO, 2013).

Também conhecida por Ponta dos Cachimbos, a Vila Conceição, durante muito tempo, foi o bairro por excelência de grupos pertencentes a uma elite de Porto Alegre. Eram famílias que priorizavam a natureza com seus recantos aprazíveis e as águas limpas do rio. Não esquecendo a convivência com seus pares, a maioria alemães.

A Pedra Redonda, a terceira vila balneária do bairro Tristeza, também marcou época na história do veraneio da Zona Sul de Porto Alegre, na primeira metade do século vinte. Frequentada por uma elite oriunda de imigrantes alemães, o local ficou marcado pelos usos do rio para banhos, esportes náuticos e também para encontros de famílias. Foram as pedras redondas situadas na beira da praia que deram nome ao balneário, e futuramente, ao bairro. Um lugar rochoso, mas muito atraente. Sobre a denominação do lugar, explica Pellin:

Tem esse nome porque em sua praia encontramos três enormes pedras acavaladas, sendo a superior maior e arredondada. É uma praia funda, por ser costa de um morro alto. Tem uma areia grossa, misturada com conchinhas do tamanho de uma unha. Podemos considerar como seus limites, a Ponta dos Cachimbos e o Morro do Sabiá. Começou a ser descoberta em 1900, com a construção de vivendas para veraneio. Muitas famílias se deslocavam para cá nos fins de semana, porém o meio de transporte era muito precário. Em 1908, a rede ferroviária foi prolongada até a praia (PELLIN, 1979, p. 110).

Um notável desenvolvimento turístico e econômico se deu na região a partir do início do século passado. Paulatinamente, o requinte urbano foi-se corporificando na Zona Sul da cidade, pois muitas famílias burguesas costumavam aproveitar a orla do Guaíba para banhos no quintal dos fundos de suas chácaras. A maioria dos terrenos chegava até à beira do Guaíba – apenas um portão separava a vivenda do rio. Muitas dessas chácaras possuíam também guarda-barcos e ancoradouros próprios, auxiliando na chegada das embarcações. A prática de esportes náuticos como a vela, o remo e o iatismo atraíam grupos de alemães, fazendo com que adquirissem extensas propriedades para uso da família e dos amigos. Com a prática do veraneio, muitas famílias desenvolveram suas sociabilidades à beira rio, e para isso se utilizavam dos clubes recreativos de verão, hotéis e até cinemas.

OS HOTÉIS E OS CLUBES DE VERÃO DA TRISTEZA

A partir das primeiras décadas do século passado, devido ao grande movimento de veranistas nas praias da Zona Sul, a Tristeza viveu uma fase áurea de desenvolvimento. E isso ocasionou incrementos não só na infraestrutura da região – construção de estradas, restaurantes, clubes, cinemas, bares e hotéis, mas também nos eventos sociais e culturais ocorridos no arrabalde.

Milhares de turistas levaram à população da Tristeza vantagens e exigências. Vantagens, porque o imigrante laborioso e geralmente humilde contactou com gente econômica e culturalmente bem colocada fazendo-o evoluir rapidamente através de uma convivência mais ou menos prolongada com o visitante, que espichava os meses de estio de dezembro a maio (FLORES, 1979, p. 58).

O crescimento acelerado ocorrido na região refletiu na economia:

Na órbita econômica, a massa turística motivou um incremento da hortifruticultura e da pecuária existente, pois o consumo multiplicava nos meses de verão. Além disso, surgiu uma série de empregos e ocupações na área terciária, até então inexistentes. As primitivas chácaras foram desdobradas, fragmentadas, e no bairro germinaram uma série de serviços indispensáveis ao bom atendimento da avalancha de turistas. (FLORES, 1979, p. 58).

Foram os turistas que trouxeram para o arrabalde novas formas de recreação e de cultura, entre elas, o hábito dos bailes, saraus, piqueniques, serenatas e a prática de esportes. “Os veranistas da Tristeza foram os responsáveis pela abertura das atividades recreativas, introduzindo festas de caráter mundano e popular, particularmente os clubes sociais como o Filosofia, o Jocotó e o Esmeralda”(FLORES, 1979, p. 64).

Com o movimento intensificado nos meses de verão e marcado por uma vida social intensa, oportunizada pelos clubes e associações, fez-se necessária a ampliação e melhorias na forma de bem receber o turista. É fato que nem todos possuíam residências de verão, por isso muitos alemães cediam suas casas para esses grupos que vinham apenas nos períodos de férias e nos finais de semana. Surge neste período, portanto, a necessidade dos serviços de hotéis e pensões. Segundo Hilda Agnes Hubner Flores:

Quando o afluxo turístico trouxe, além dos veranistas de fins de semana, aqueles que moravam no arraial durante os meses de estio, a infraestrutura hoteleira mostrou-se pequena. Havia os turistas que preferiam alugar casa. Muitos imigrantes cederam então suas próprias moradias, indo morar em peças existentes nos fundos ou no porão. Esta última opção foi a escolhida pela família Dariano. Por dois ou três verões alugaram sua residência para o poeta Vitor Silva, que veraneava com a mãe e esposa (1979, p. 44).

Com o passar do tempo, alguns integrantes da família Dariano de que fala a historiadora, foram os responsáveis pela construção do moderno cinema da Tristeza5 , que depois passou a se chamar Gioconda. É importante salientar que foi no Gioconda que iniciaram as primeiras atividades sociais de alguns clubes da Tristeza, entre eles o Jocotó em 1924. “Na segunda década deste século a família Dariano, principalmente os irmãos Miguel e Leonardo construíram um moderno cinema de alvenaria na Tristeza: o Gioconda” (FLORES, 1979, p. 45).

Após alguns anos o cinema foi adquirido por José Gomes, dono de chácara e próspero padeiro na Tristeza. Alberto do Valle mais tarde o comprou e reformou, equipando-o com cadeiras removíveis, com o que serviu também para teatro e salão de bailes dos clubes sociais como o Filosofia e o Jocotó, formado por veranistas, e o Padeiral, cujo corpo social compunha-se de pessoas ligadas ao ramo de panificação, e que não teve sede própria (FLORES, 1979, p. 45).

A Tristeza abrigou outras casas de espetáculo, porém, o Gioconda foi o único cinema que sobreviveu à fase de veraneio. Somente na década de 1970, com o advento da televisão, o cinema da Tristeza assim como outros da Zona Sul, faliram, pondo fim às salas afastadas do centro da cidade. Os clubes sociais monopolizaram o divertimento e, entre esses, destacava-se o Clube Veranista Jocotó.

 A obra de Olyntho Sanmartin “Um ciclo de cultura social” (1969) traz um resumo cronológico de fatos ocorridos no cenário cultural da cidade de Porto Alegre nas primeiras décadas do século vinte. O autor centraliza seu tema nas realizações do Jocotó, um clube recreativo que nasceu no arrabalde da Tristeza no início do século passado. Sanmartin também traz o registro da participação de conceituados artistas em ocasiões festivas e shows nos salões ao longo dos anos em que existiu o clube.

Cabe registrar que os primórdios desta instituição social ocorreram nos anos de maior movimento do arrabalde da Tristeza, devido à procura pelos balneários do Guaíba nos períodos de férias e calor. Porto Alegre naqueles primeiros anos do século vinte usava ainda uma roupagem provinciana em certos recantos da cidade, como era o caso dos bairros mais afastados do centro de Porto Alegre.

Nesse período, os clubes sociais e desportivos, as sociedades carnavalescas e blocos existiam em número bastante limitado em Porto Alegre. Fazem parte deste grupo, pela sua importância histórica e pela sua expressão social, a Sociedade Esmeralda, a Sociedade Filosofia, a Sociedade Filhos do Inferno e, finalmente, o Clube Jocotó – cujas festas e bailes carnavalescos chamavam a atenção da sociedade portoalegrense da época. Na realidade, o Jocotó surgiu, pela primeira vez, na Zona Sul de Porto Alegre, e, posteriormente, se propagou para outros cantos da cidade.

Associados a esse cenário urbano cultural existiam consagrados homens das letras, como poetas e jornalistas, os quais determinavam os eventos onde não faltavam também cantores, artistas plásticos, bailarinos, etc. Entre eles, é pertinente citar: Alcides Maya, Roque Callage, Mansueto Bernardi, Pedro Vergara, Augusto Meyer, Atos Damasceno, Darci Azambuja e Mário Totta. Esse último responsável pela criação e sucesso do Clube Veranista Jocotó entre os anos de 1924 e 1934.

 Assim, em 1918, juntamente com outros jovens veranistas da Tristeza, Mário Totta funda o Clube Jocotó, local onde os grupos assistiam a shows musicais, participavam de conferências culturais, e, no verão, se divertiam nos animados bailes da cidade, entre eles os carnavalescos. Totta era médico e poeta, conforme Olyntho Sanmartin: “Foi um dos mais requintados espíritos que animava toda a esfera intelectual, promovendo reuniões culturais, escrevendo sua prosa simples e pura no Correio do Povo” (1969, p. 52).

O surgimento do Jocotó coincidiu com o momento vivido pela população portoalegrense que procurava nos arrabaldes mais distantes, descanso e recreio às margens do Guaíba. A descoberta das praias da Zona Sul permitiu que novas formas de sociabilidades fossem criadas, entre elas as sociedades recreativas. A Tristeza era muito atraente, pois, além das facilidades de locomoção com os usos do trem, o local oferecia belas praias, natureza bastante preservada e ares aprazíveis. O lugar era bonito, cheio de vivendas e bangalôs de verão. Sanmartin recupera esses cenários:

O que havia, no entanto, de mais sedutor, de mais ameno e poético era um trenzinho municipal que, partindo da Estação do Riacho junto à histórica Ponte de Pedra, deslizava sobre trilhos marginando o Guaíba até alcançar a praça da Tristeza onde se localizava a estação. Depois surgiu novo trecho que terminava na Praia da Pedra Redonda, o balneário da cidade. Aos domingos e feriados esse trenzinho com sua locomotiva minúscula arrastando uma fila uniforme de vagões, circulava superlotado de passageiros amigos da Tristeza
e da Pedra Redonda, onde tomavam seus banhos divertidos (1969, p. 64).

Assim, muitos banhos divertidos nas praias da Tristeza foram tomados por Mário Totta e sua família naqueles idos de 1920, pois, assíduos que eram no arrabalde, nunca perdiam  verão. E para descansar de suas atividades de professor e médico, Totta aproveitava os momentos de lazer nas praias da Tristeza. Ele idealizava e organizava todas as festividades do balneário, e por isso, sempre agradava a todos: moradores e veranistas. Esse envolvimento com o balneário fez surgir a ideia de uma sociedade recreativa, o que se concretizou por meio de seu empenho e também o de outros intelectuais da época.  A denominação da sociedade foi a de “Clube Veranista Jocotó”. Sobre essa escolha, explica Hilda Flores:

O nome do clube foi inspirado pelo ‘Passo do Jocotó’ número picante e de grande sucesso que uma companhia nacional de revistas apresentara no teatro Coliseu. Átila Soares, um dos veranistas, pelo seu jeito peculiar de andar lembrava o ‘passo do jocotó’, pelo que foi apelidado como tal, e breve toda a rapaziada da república da Tristeza era conhecida como os jocotós, bem assim como o Clube que fundaram (1979, p. 63).

Eram rapazes muito alegres que se apresentavam nas movimentadas noitadas do arrabalde da Tristeza, por isso ficaram conhecidos como “os jocotós”. Em pouco tempo o Clube Veranista Jocotó foi fundado, substituindo a Vila do Jocotó recentemente instituída, estilo uma república de jovens universitários. O comportamento desse grupo de veranistas, comandado por Mário Totta, teve uma vida boêmia de profunda intensidade. Armando Teixeira, um dos entusiastas do clube, narra os primórdios do Jocotó, bem como de sua fundação:

A 24 de fevereiro de 1918, por um grupo alegre de rapazes, constituído por José Paiva, Ariovaldo Machado, Luiz Lopes, Armando Barcellos, Leonardo Carlucci, Rui Santiago e Mário Lopes, que veraneavam então numa casinha de madeira denominada “Vila Jocotó”, neste arrabalde, foi levada a efeito a representação de um interessante espetáculo humorístico, ao ar livre, com o
concurso dos seguintes veranistas: Pedro Paulo da Rocha, Carlos Guaragna, Manoelito Teixeira, Atila Soares, Otávio Soares e Armando Teixeira. A realização desse divertimento, que alcançou um ruidoso sucesso, constituiu o início do nosso inigualável Jocotó (SANMARTIN, 1969, P. 65).

A primeira diretoria responsável pelo clube, que tinha sede na Tristeza, estava assim constituída: Presidente honorário, Mário Totta  –  Presidente, Álvaro de Lima Santos – Vice-Presidente, Carlos Noll Sobrinho. O clube também possuía um veículo de divulgação e comunicação que era “O Veranista”, um jornal impresso em papel gessado de regular formato, ilustrado e que além das notícias locais, no período de férias, publicava textos literários. 

Entre os poetas colaboradores do jornal estavam Mario Totta, Peri Vale Soares, Zeferino Brazil, Raul Totta e Euclides Lobato. O jornal era publicado quinzenalmente nos períodos de veraneio que eram os meses de janeiro e fevereiro. No período carnavalesco, o clube promovia movimentados bailes, os quais se realizavam nos salões do Cinema Gioconda, popular casa de diversões da Tristeza. Momento em que Porto Alegre vivia seus melhores carnavais populares com ênfase para os cordões, desfiles de foliões, carros alegóricos e os bailes de clubes.

Entre outras promoções expressivas, merece registro o “Enterro do Lampião de Querosene”, quando, em 1924 a luz elétrica, destronando o lampião, passou a iluminar a Tristeza. E o clube veranista Jocotó teve importante participação neste evento.

Episódio curioso está relacionado ao surgimento da luz elétrica na Tristeza. Em 1924, velho e fiel lampião de querosene estava superado. A turma de intelectuais achou que ele não merecia simplesmente o desprezo, mas uma despedida digna dos longos anos de serviço que prestara. Fizeram-lhe o enterro, os Jocotós à frente. Velaram a noite toda na sede do clube, e no dia seguinte, em coche puxado a cavalo, o séqüito se dirigiu em direção ao cemitério, às margens do Guaíba (FLORES, 1979, p. 66). 

Como o movimento de veranistas era grande nesse período, o trenzinho transportava os grupos em vários horários do dia. 

O carnaval era festejado nos salões e na rua, com desfiles dos blocos que caprichavam nas fantasias. Para assistir a estes festejos o trenzinhotransportava centenas de pessoas que se deslocavam da capital para o alegre bairro balneário, assistindo aos desfiles, engrossando o ‘entrudo’, isto é, o hábito de se jogar farinha nos foliões, e superlotando os salões da Tristeza, que nesses momentos tornavam-se poucos e pequenos para abrigar toda a alegria contagiante do Rei Momo (FLORES, 1979, P. 66). 

Foi na gestão de 1934, quando Mario Totta ainda era diretor do clube que se encerraram as atividades culturais do Jocotó. O seu declínio era evidente, desde o momento em que Totta, o maior de todos os incentivadores do clube, entrava em recesso por já ter cumprido longo mandato e por estar passando por problemas familiares. Cabe salientar que foi durante as gestões de Mário Totta que o Clube Veranista Jocotó viveu seus anos de maior esplendor, cujo destaque se deu para o caráter cultural da instituição.  No Gioconda se apresentaram artistas conhecidos da época como Pasqual Fossati acompanhado pelo pianista Ramadés Gnattali.  Assim, o bairro Tristeza tornou-se referência quando o assunto era descanso e diversão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na primeira metade do século vinte, as novas formas de usufruir o tempo livre, associadas ao conforto proporcionado pelos investimentos, tornaram alguns balneários da Zona Sul de Porto Alegre, lugares de veraneio, de descanso e de  lazer. A praia da Tristeza, nesta época, tinha o ar mais puro e um cenário muito atraente com a natureza bastante preservada. Por isso,  era um convite irresistível ao homem da cidade. Desta forma, entende-se que o lazer empreendido pelos porto-alegrenses nas primeiras décadas do século vinte vai estar associado a permanências em lugares aprazíveis como as praias  do Guaíba da Zona Sul. E era isso que buscavam as famílias quando se dirigiam aos balneários da Tristeza: lazer à beira rio. 

As facilidades do deslocamento com os  serviços do trem municipal e dos vapores que navegavam no Guaíba chegando até a Zona Sul, fizeram com que muitos grupos rumassem para a Tristeza nos finais de semana e nas férias.  Para Sérgio da Costa Franco (2008), a Tristeza veio a ser a primeira estação de veraneio dos porto-alegrenses ricos, que ali mantinham chácaras e mansões de lazer à margem do Guaíba. 

É importante salientar que o lago foi o grande impulsionador do desenvolvimento da região. Por meio dele, a população descobriu o veraneio em águas doces e próximas ao centro da cidade. Desta forma, criou-se uma prática agradável nos meses mais quentes do ano para aqueles que não podiam viajar longas distâncias até o litoral.  As “praias de mar” eram de difícil acesso neste período. Para se chegar a Torres ou Tramandaí era preciso, pelo menos, um dia de viagem, atravessando lagoas, matos e enfrentando dificuldades diversas.

A importância do Guaíba remonta aos primórdios da ocupação de Porto Alegre, pois significou a permanência em suas margens, a solução para garantir a sobrevivência através da pesca e a construção de barcos, oportunizando o alargamento do universo conhecido pelo acesso a outras vias fluviais.  Considerado um espaço de identidade urbana e de contato dos moradores com o  rio,  se fez necessário o incremento de infraestrutura na região. 

Assim, bairro recém-ligado à cidade por via férrea e margeado em parte pelo Guaíba, a Tristeza foi o primeiro balneário descoberto pela população, ainda no século dezenove, pois, além dos banhos de rio, o local propiciava descanso e tranquilidade aos moradores ocasionais. Aliado a esse novo cenário moderno, o espaço começou a ser recortado por uma arquitetura de influência europeia que contemplava residências de luxo – as imponentes vivendas com praia particular. Eram novos moradores, os quais se configuravam em uma elite residente, muitas delas oriundas de famílias tradicionais, descendentes de imigrantes alemães e que tinham poder aquisitivo, as quais desenvolveram suas sociabilidades e negócios à beira rio. 

Assim, considerando-se todos esses aspectos, a história dos primórdios da Zona Sul de Porto Alegre, bem como do veraneio nos balneários da Tristeza, remetem a um tempo que perfaz mais de duzentos anos, o que atesta uma história de longa duração, a qual merece ser divulgada e, principalmente, preservada. Conforme Sérgio da Costa Franco  (1998),  uma cidade só existe, torna-se palpável, adquire densidade humana e espiritual, quando é capaz de resgatar de maneira permanente o seu passado. Sem passado não há história, sem história perde-se a identidade e o futuro. 

REFERÊNCIAS

HOWARD, Ebenezer. URBANISMO, planejamento urbano e planos diretores. Disponível em: <http://urbanidades.arq.br/2008/10/ebenezer-howard-e-a-cidade-jardim/>. Acesso em: 16 dez. 2013).

HUYER, André. A Ferrovia do Riacho: um caminho para a urbanização da Zona Sul de Porto Alegre.  Dissertação de Mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2010, p. 131. [Orientadora: Dra. Célia Ferraz de Souza]. 

FLORES, Hilda A. H. Tristeza e Pedra Redonda. Porto Alegre: ELAPE, 1979.

FRANCO,  Sérgio  da C.  Porto Alegre: guia histórico. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1998. 

FRANCO, Sérgio da C. A velha Porto Alegre. Porto Alegre: Canadá, 2008.

MACHADO, Janete da Rocha. O veraneio de antigamente: Ipanema, Tristeza e os contornos de um tempo passado na Zona Sul de Porto Alegre (1900  –  1960). Dissertação de Mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em  História da PUCRS.Porto Alegre, 2014. [Orientadora: Dra. Claudia Musa Fay]. 

MENEGAT Rualdo.  Atlas Ambiental de Porto Alegre.  Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1998.

PELLIN, Roberto. Revelando a Tristeza. Porto Alegre: Metrópole, 1979, I v.

PELLIN, Roberto. Revelando a Tristeza. Porto Alegre: Metrópole, 1996, II v.

PICCOLO, Helga L. Entrevista concedida à autora. Porto Alegre, 14 fev. 2013.

SANHUDO, Ary Veiga.  Porto Alegre:  crônicas da minha cidade. Porto  Alegre: Movimento, 1975.

SANMARTIN, Olintho. Um ciclo de cultura social. Porto Alegre: Sulina. 1969

SCHIDROWITZ, Léo Jeronimo. Rio Grande do Sul: imagem da terra gaúcha. Porto Alegre: Cosmos, 1942.

WILKOSZYNSKI, Artur do Canto.  Relatório de pesquisa:  análise gráfico-comparativa e perceptiva da evolução urbana – caso Porto Alegre; subprojeto: análise do percurso do trem da Tristeza. Porto Alegre: FAPERGS, 1991. 

1 PUCRS. Doutora e Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação da PUC/RS. [email protected]

2 Guaíba: rio ou lago? Neste artigo, aparecerão os dois termos, devido a forte tradição em se nomear o Guaíba de rio. Porém, conforme explicação do Atlas Ambiental de Porto Alegre, o Guaíba é um lago, pois os rios que nele desembocam formam um delta. Esse tipo de depósito sedimentar ocorre quando um volume de água confinado por canais encontra-se com um grande corpo de água, Cerca de 85% da água do Guaíba fica retida no reservatório por um grande período de tempo. Os depósitos sedimentares das margens possuem estrutura característica de sistema lacustre; A vegetação da margem é de matas de restinga, identificadoras de cordões arenosos lacustres (MENEGAT Rualdo. Atlas Ambiental de Porto Alegre. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1998, p. 37)

3 Ebenezer Howard propôs uma alternativa aos problemas urbanos e rurais que então se apresentavam. A chave para a solução dos problemas da cidade era reconduzir o homem ao campo, através da criação de atrativos – ou “ímãs” – que pudessem contrabalançar as forças atratoras representadas pela cidade e pelo campo. Ele argumentou que havia uma terceira alternativa, além das vidas urbana e rural, que seria o que ele chamou de Cidade-Campo (Town-Country). O modelo proposto por ele foi o chamado Cidade Jardim. (URBANISMO, planejamento urbano e planos diretores. Disponível em: . https://urbanidades.arq.br/2008/10/13/ebenezer-howard-e-a-cidade-jardim/ Acesso em: 16 dez. 2013).

4 Helga Landgraf Piccolo nasceu em Porto Alegre em 1932. Formou-se em História e Geografia pela UFRGS (1952). Concluiu o doutorado em História Social pela USP em 1972. Possui uma produção bibliográfica de mais de 130 obras. É pesquisadora emérita do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPQ).

5 Desde sua inauguração, nos anos de 1920, até o encerramento de suas atividades em 1970, o Cine Gioconda teve três donos: os irmãos Dariano, José Gomes e Alberto do Valle.