Escravidão e Alforria

Gabriel Aladrén2 faz uma análise dos padrões de alforria nas localidades de Porto Alegre, Aldeia dos Anjos e Viamão, entre os anos de 1800 e 1835, uma região que “contava com uma economia razoavelmente diversificada, mas caracterizava-se, sobretudo, por atividades rurais”. Segue um resumo do artigo cujo teor pode ser apreciado, de maneira completa, no link disponível no final desta página.3

Alforria, paternalismo e etnicidade em Porto Alegre, 1800-1835

Porto Alegre consistia-se no núcleo urbano mais significativo, mas não passava, no início do século XIX, de uma pequena vila colonial. Limitava-se a um exíguo território ao redor do antigo Porto de Viamão, às margens do Guaíba, onde foram instalados os açorianos que chegaram na capitania sulina entre 1751 e 1754.

No entorno deste núcleo urbanizado, existia uma extensa zona rural, com fazendas, chácaras e campos de criação de gado. Na Aldeia dos Anjos e em Viamão, desenvolvia-se uma produção agrícola combinada com a pecuária. Em 1807, a população dessas localidades totalizava 9.886 pessoas, sendo 3.415 escravos (34,5%) e 887 libertos (8,9%).

A delimitação cronológica principia em 1800, quando o Rio Grande de São Pedro experimentava um crescimento populacional e o incremento na importação de escravos. A pesquisa se encerra em 1835, quando se iniciou a Guerra dos Farrapos, a partir da invasão de Porto Alegre pelos rebeldes, no mês de setembro. A carta de alforria é um documento privilegiado para a análise da ideologia senhorial. É onde se registra um momento crucial da política de domínio paternalista: a produção de dependentes (CUNHA, 1986, p. 123-144). Os senhores interpretavam a alforria como uma concessão dada em retribuição à obediência e aos bons serviços prestados pelo escravo.

Francisco de Vargas Correia recebeu de seu escravo Francisco, nação Benguela, a quantia de 153$600 réis pela liberdade desse, mas justificou a alforria da seguinte forma: […] em virtude da dita quantia que recebi e dos bons serviços que sempre me fez e tratando-me com obediência de humilde escravo e amor de filho […]. Mesmo tendo recebido dinheiro pela alforria, o senhor fez questão de afirmar que deu a carta de liberdade também em razão do comportamento do escravo. Comportamento que devia ser adotado, na óptica senhorial, inclusive após a liberdade. O senhor, benevolente”, esperava do liberto o respeito e o reconhecimento pela graça concedida. Ao alforriar a escrava parda Marcelina, de muita idade, Joaquim José de Azevedo e sua mulher Rita Maria de Jesus deixam isso bem explícito:

Reservando somente o respeito que sempre deve ter a todas aquelas pessoas que concorreram para sua liberdade e muito mais a seus senhores que foram para que nunca for minar raivas descomposturas com palavras injuriosas como já tem acontecido […] do contrário desde já [ilegível] ficará esta sem vigor e nula sem efeito e para que assim não aconteça viva na boa paz e sossego do seu espírito com aquela sinceridade e respeito devido.

Parece que a parda Marcelina já não reservava o respeito esperado por seus senhores, que, mesmo assim, a alforriaram, com a ameaça de que se ela não se comportasse adequadamente, seria chamada de volta ao cativeiro. Essa possibilidade de revogação da alforria por conta da ingratidão ou da traição do liberto, além de constar nas Ordenações Filipinas, era, muitas vezes, reforçada como ameaça nas cartas de liberdade: com a condição de esta ficará de nenhum efeito, se em qualquer tempo durante a minha vida come ter contra a minha pessoa traição ou desobediência,  disse Prudenciana Maria do Carmo, ao libertar gratuitamente sua escrava Severina Maria[…].

A ideologia paternalista dos senhores de escravos era tão arraigada que, em alguns casos, os termos de seu discurso entravam em evidente e manifesta contradição. Jerônimo Ribeiro da Cunha, ao passar a carta de alforria a seu escravo em Porto Alegre, no dia 25 de março de 1814, assim escreveu:

Digo eu Joaquim Ribeiro da Cunha na qualidade de herdeiro da herança [ilegível] da minha defunta mãe Cristina da Costa  Meireles, que por observação a um despacho que me foi intimado do Excelentíssimo Senhor Governador e cujo me obriga a dar a liberdade ao crioulo Joaquim cativo que foi do mesmo casal, por este de hoje em diante fica o dito crioulo gozando dela como forro que fica para todo sempre por mim meus herdeiros e testamenteiros para que em tempo nenhum lhe possam obstar peço à Justiça de Sua Alteza Real haja de lhe conservar a dita doação assim como eu faço de minha livre vontade sem que para isso receba prêmio algum.

Não pude localizar o despacho do governador que obrigou Ribeiro da Cunha – herdeiro e provavelmente testamenteiro de sua mãe – a conceder a liberdade a Joaquim. Talvez, Cristina da Costa Meireles tenha-o deixado liberto em verba testamentária. Ou então o crioulo Joaquim pode ter amealhado a quantia cor- respondente ao valor em que foi avaliado no inventário e ter solicitado a sua alforria. De qualquer modo, Joaquim recorreu ao governador, que emitiu um despacho intimando Ribeiro da Cunha a lhe conceder a liberdade. Mesmo reconhecendo que foi obrigado, o senhor não se furtou a dizer que fazia a carta de livre vontade e, que para isso não havia recebido prêmio algum.

Esse caso toca em uma questão fundamental: a prerrogativa de conceder a carta de alforria era de âmbito estritamente pessoal e um direito exclusivo do senhor. A interferência do Estado na relação pessoal entre senhor e escravo ocasionava tensões e não deveria ser corriqueira. O domínio de classe na escravidão fundava-se, necessariamente, em relações pessoais entre os senhores e os escravos […].

Conclusões

Os padrões de alforria de Porto Alegre, Aldeia dos Anjos e Viamão aproximavam-se, em parte, dos observados em outras regiões do país. A maior proporção de mulheres e escravos nascidos no Brasil foi recorrente em vários lugares, apesar de os africanos terem se sobressaído durante certo período do século XIX, nas cidades de Salvador e Rio de Janeiro. Pude perceber que os crioulos e pardos tinham mais oportunidades de receber sua alforria sem contrapartida pecuniária. Eles eram amplamente majoritários entre os alforriados gratuitamente ou sob condição. Esses escravos gozavam de uma maior proximidade com seus proprietários e alguns eram de confiança do senhor. Era com eles que se estabeleciam relações paternalistas, o que fazia com que fossem privilegiados na obtenção de alforrias.

FONTES:

CUNHA, Manuela Carneiro da. Sobre os silêncios da lei: lei costumeira e positiva nas alforrias de escravos no Brasil do século XIX. Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo: Brasiliense/Edusp, 1986, p. 123-144, citada por Gabriel Aladrén, autor de Alforria, paternalismo e etnicidade em Porto Alegre, 1800-1835

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense

3 Artigo publicado em http://www.ufrgs.br/ppghist/anos90/27/27art4.pdf

A carta de alforria é um documento privilegiado para a análise da ideologia senhorial. É onde se registra um momento crucial da política de domínio paternalista: a produção de dependentes (CUNHA, 1986, p. 123-144)1. Os senhores interpretavam a alforria como uma concessão dada em retribuição à obediência e aos bons serviços prestados pelo escravo. Gabriel Aladrén