Rua do Arvoredo

David Coimbra

Os candidatos a prefeito, queria que se batessem por uma prioridade: o luxo. Queria que um proclamasse: para Porto Alegre, agora, o creme, o champanha, a seda e o cetim. Queria um que fosse na Fernando Machado, antiga e mal-afamada Rua do Arvoredo, e decidisse: parte dessa rua será transformada em cenário. Os prédios, o calçamento, a iluminação, tudo vai receber maquiagem da década de 1860, época dos satânicos crimes perpetrados pelo açougueiro José Ramos.

Os Crimes da Rua do Arvoredo, você sabe, ahn? Ramos usava sua bela amásia, como se dizia então, feito isca para suas infelizes vítimas. Catarina, esse o nome dela, era uma húngara vistosa, de amarelo nos cabelos e azul nos olhos, alta e esguia como poucas mulheres podiam se gabar de ser no Brasil de há 140 anos.

Mal caía a tarde, Catarina deslizava para fora da casa de José Ramos, esgueirava-se pelas ruelas sombrias do centro da Capital. Uma mulher sozinha à noite… Uma temeridade que nenhuma moça “de família” ousaria cometer.

O vocabulário de Catarina em português não passava de uma dúzia de palavras. Era o suficiente. Bastava-lhe lancetar um olhar azulado nas pupilas do primeiro notívago e a alma dele já estava capturada e ele a seguia hipnotizado até a casa de Ramos e entrava ávido e logo se cevava nas carnes brancas e rijas da húngara feiticeira.

Depois de saciada a luxúria do homem, Catarina lhe matava a fome. Servia-lhe um banquete. E o homem se fartava e bebia e lambia os beiços e suspirava de satisfação.

Então, agia o açougueiro.

Acionada uma alavanca secreta, abria-se um alçapão sob os pés do amante. O homem, espantado, se estatelava num porão escuro, onde o soturno José Ramos o aguardava com um machado afiado. De um único golpe certeiro, o verdugo tirava o tampão da cabeça da vítima com a facilidade de quem atora um melão maduro.

Em seguida, começava o trabalho paciente e metódico. Ramos esquartejava o corpo com a perícia da sua profissão, arrancava-lhe as carnes nobres, limpava os ossos, apartava as tripas e todos os órgãos internos de menor serventia. Reunia, por fim, as carnes tenras, e as moía e condimentava. O guisado era transformado em lingüiça que, de saborosa, fez enorme sucesso na Capital. Gente de todas as partes da província encomendava o produto especialíssimo da casa de José Ramos, do bispo ao intendente, do amanuense ao anspeçada. Você, que está aí sereno, lendo compenetrado, bem pode ser descendente de canibais.

Essa é a lenda. Imagine como pode ser aproveitada. Que tal um “Roteiro Macabro pela Rua do Arvoredo”? Os turistas sendo conduzidos por guias em meio à noite lúgubre da rua redecorada, ouvindo de olhos esbugalhados a insuperável história de terror de Ramos e Catarina, visitando a casa maldita convertida em museu da Porto Alegre do século 19, depois se abancando em botequins ambientados com motivos da época, bebendo chope e comendo… lingüiça.

Imagine, ao lado dos bares, pequenas lojas vendendo lembranças e livros. O ótimo do sempre ótimo Décio Freitas, O Maior Crime da Terra, seria best seller.

Outros pontos da cidade poderiam receber igual tratamento. Na frente da linda igreja das Dores havia, na mesma época de Ramos e Catarina, uma forca onde se executavam os criminosos. Ali poderia ser erigido um monumento em memória dos enforcados e as histórias horrendas de seus crimes e mortes seriam narradas de sobre esse monumento e todos lá iriam escutar.

E o Palácio Piratini que, juram antigos inquilinos, ainda abriga o fantasma renitente de Borges de Medeiros, que nem morto aceita largar o poder?

E o misterioso túnel sob o Palácio, via de escape para governadores impopulares ou alvos de revolução, túnel esse que, dizem, desemboca numa das praias do Guaíba?

Mas nem só de macabrismo se sustentaria o turismo dessa Porto Alegre. Poder-se-ia também ir lá no IAPI e passear pela casa de Elis Regina e essa casa também evocaria a lembrança da grande cantora e ao lado haveria um bar onde se cantariam as músicas de Elis e se venderiam seus discos. O Lupicínio, que já tem o seu bar, também poderia ser mais explorado como personagem da cidade, os lugares onde ia, onde batia sua caixinha de fósforo, torcia para o Grêmio de Otto Pedro Bumbell e Geada, e chorava seus amores desfeitos.

E também Getúlio Vargas. E Oswaldo Aranha. E talvez até se pegaria aquele aeromóvel que só anda 200 metros todos os dias e se puxaria aquela linha inexistente para uma Ipanema feérica de luzes e música e gente passeando a rir pela orla do rio.

Ah, e a Fernando Gomes, ali perto da caixa d’ água, onde já há o Lilliput e o Jazz Café e tantos outros bares e cafés, aquela rua mereceria iluminação especial e segurança especial e música na calçada ou entre os paralelepípedos duros e quem sabe haveria casais dançando sob as estrelas, por que não?

E o Largo Glênio Peres, que já se assemelha às praças espanholas ou à Praça de São Marcos, de Veneza, esse largo, como Veneza, também poderia ter seus cafés e orquestras tocando nas suas margens.[..]

Fonte: Jornal ZH de 17 de maio de 2000