O Olhar de Saint-Hilaire sobre Porto Alegre
Auguste François César Prouvençal de Saint-Hilaire (1779/1853), botânico e naturalista, natural da cidade de Orleães, à margem do Loire, a cerca de cem quilômetros de Paris, França. Saint-Hilaire percorreu o Brasil por um período de seis anos, de 1816 a 1822. O registro de seu périplo, suas pesquisas e observações, tem valor inestimável.
Porto Alegre foi alvo do interesse do viajante ilustre. Em 21 de junho de 1820 Saint-Hilaire escreve em seu diário suas impressões ao entrar no perímetro urbano da nossa cidade:
“…o caminho, que se vinha orientando de nordeste para sudoeste, faz um cotovelo para oeste. Descortina-se a cidade e, em seguida, o cimo de uma coxilha que, avançando sobre um lago, dá início à lagoa dos Patos, formando um istmo, sobre o qual está situada a cidade de Porto Alegre.
À esquerda da coxilha, aquém da cidade, há um vale amplo e pouco profundo, coberto de pastagens bem rasteiras, idêntica às dos arredores daqui. À direita da coxilha, entre ela e o lago, estendem-se terrenos baixos, povoados de casas de campo, de plantações de mandioca e cana-de-açúcar. Em todo o Brasil, os campos cultivados são muito distantes uns dos outros; na região de que estou falando, eles se tocam como nas mais densas regiões da Europa, e denunciam a proximidade de uma cidade populosa.
Do pouco que disse da posição de Porto Alegre se deduz quanto agradável ela é; já não se trata de zona tórrida, com seus sítios majestosos e menos ainda desertos monótonos. Aqui lembra o sul da Europa e tudo quanto ele tem de mais ameno Ao entrar nesta cidade, surpreendeu-me o seu movimento, bem como o grande número de casas de dois andares que ladeiam as ruas e a quantidade de brancos aqui existentes. […] Fácil perceber-se, desde o primeiro instante, que Porto Alegre é uma cidade nova; todas as casas são novas, e muitas ainda em construção; mas, depois do Rio de Janeiro, não tinha ainda visto uma cidade tão imunda, talvez mesmo a capital não o seja tanto..” 1
Em uma nota datada de 1º de julho de 1820 Saint-Hilaire comenta sobre a criação de uma junta criminal em Porto Alegre:
“Antes do governo do Marquês de Alegrete, predecessor do Conde de Figueira, os criminosos desta capitania eram enviados ao Rio de Janeiro para aí serem julgados. Mas, como nessa distante cidade se tornava difícil reunir provas suficientes para condená-los, e como ninguém agisse contra eles, era costume deixá-los padecer durante vários anos na prisão, terminando por libertá-los sem julgamento. O Marquês de Alegrete solicitou e obteve do rei a criação de uma junta criminal, que deve reunir-se anualmente, composta do general, do ouvidor e do juiz-de-fora de Porto Alegre, do juiz-de-fora do Rio Grande e o de Rio Pardo.” 2
Na mesma data, Saint-Hilaire tece algumas observações sobre o extrativismo de frutas:
“As amendoeiras, os pessegueiros, as ameixeiras, macieiras, pereiras e cerejeiras desenvolvem-se muito bem nos arredores de Porto Alegre, produzindo bons frutos. Entretanto poucos são as pessoas que se dedicam ao cultivo desses frutos e em geral as espécies para aqui trazidas são de qualidade inferior. A oliveira produz também bons frutos, porém em escassa quantidade. A vinha prospera muito bem. Algumas pessoas fabricam vinho, porém de qualidade inferior e sem aceitação. A elite usa os vinhos generosos do Porto e, como o pouco que se faz no Brasil está bem longe de ser bom e é desdenhado e até ridicularizado, isso conduz o desânimo aqueles que se dedicam a experiências de enologia. É incontestável, contudo, que o pior vinho nacional é mais apetecível às classes pobres (impossibilitadas de comprar o produto português) que a água ou a cachaça com açúcar.” 3
Saint-Hilaire descreve a participação em uma atividade lúdica da sociedade porto-alegrense:
“Um francês, representante aqui de uma casa do Rio de Janeiro, veio convidar-me para passar a tarde em uma casa onde devia realizar-se um pequeno baile. Sabendo que essa casa era uma das mais recomendáveis de Porto Alegre não hesitei em aceitar o convite. Deparei então, em um salão bem mobiliado e forrado de papel francês, uma reunião de trinta a quarenta pessoas, homens e mulheres. Como se tratavam de parentes e amigos íntimos não havia luxo nos trajes. As mulheres vestiam-se com simplicidade e decência, sendo que a maior parte dos rapazes trajavam fraque e calças de tecido branco. Dançaram-se valsas, contradanças e bailados espanhóis. Algumas senhoras tocaram piano, outras cantaram com muita arte, acompanhadas ao bandolim, e a festa terminou entre pequenos jogos de salão. Encontrei modos distintos em todas as pessoas da sociedade. As senhoras falam desembaraçadamente com os homens e estes cercam-nas de gentilezas, sem contudo demonstrarem empenho ou ânsia de agradar, qualidade quase exclusiva do francês. Ainda não tinha visto no Brasil uma reunião semelhante. No interior, como já repeti uma centena de vezes, as mulheres se escondem e não passam de primeiras escravas da casa; os homens não têm a mínima ideia dos prazeres que se podem usufruir decentemente. Entre as mulheres que vi em casa do Sr. Patrício havia algumas bonitas. Na maior parte eram muito brancas, de cabelos castanhos escuros e olhos pretos. Algumas graciosas, porém sem aquela vivacidade que caracteriza as francesas. Os homens, também muito claros e de cabelos e olhos semelhantes, na cor, aos das mulheres, eram grandes e bem feitos: tinham modos destros sem a brandura que caracteriza os mineiros.” 4
Sobre o Guaíba, Auguste Saint-Hilaire escreveu que:
“este lago, medindo 60 léguas de comprimento, tem, em suas origens, os nomes de lagoa de Viamão ou lagoa de Porto Alegre. Ele se estende na direção norte-sul da costa, suas águas têm uma correnteza sensível e são geralmente doces em uma extensão de 30 léguas. É formado por quatro rios navegáveis que reúnem suas águas em frente a Porto Alegre e que divididos em sua embocadura em um grande número de braços formam um labirinto de ilhas.” O naturalista, sobre esse assunto conclui que “três desses rios, o Gravataí, que é o mais oriental, o rio dos Sinos e o rio Cahí vêm do norte, nascendo da Serra Geral e têm pequeno curso. O quarto rio, que se chama Jacuí ou Guaíba é mais importante que os outros. Vindo do oeste recebe em seu curso diversos afluentes.”
O naturalista faz uma apreciação sobre o casario da cidade:
“As casas de Porto Alegre são cobertas de telhas, caiadas na frente, construídas em tijolo sobre alicerces de pedra; são bem conservadas. A maior parte possui sacadas. São em geral maiores que as das outras cidades do interior do Brasil e um grande número delas possui um andar além do térreo, e algumas têm mesmo dois.”
Da mesma forma Saint-Hilaire conta como era naquela época a Rua da Praia:
“A rua da Praia, que é a única comercial, é extremamente movimentada. Nela se encontram numerosas pessoas a pé e a cavalo, marinheiros e muitos negros carregando volumes diversos. É dotada de lojas muito bem instaladas, de vendas bem sortidas e de oficinas de diversas profissões. Quase na metade desta rua existe um grande cais dirigido para o lago, e ao qual se vai por uma ponte de madeira de cerca de cem passos de comprimento, guarnecida de parapeito e mantida sobre pilares de alvenaria. As mercadorias que aí se descarregam são recebidas na extremidade dessa ponte, sob um armazém de 23 passos de largura por 30 de comprimento, construído sobre oito pilastras de pedra em que se apoiam outras de madeira. A vista desse cais seria de lindo efeito para a cidade se não houvesse sido prejudicada pela construção de um edifício pesado e feio, à entrada da ponte, de 40 passos de comprimento, destinado à alfândega.”
No texto abaixo Saint-Hilaire descreve algumas características das ruas, dos prédios e do Guaíba, ao qual atribui semelhanças ao Loire (rio francês) na região de Orleans (cidade onde nasceu o naturalista):
“Uma das três grandes ruas, chamada rua da Igreja, estende-se sobre a crista da colina. É aí que ficam os três principais edifícios da cidade, o Palácio, a Igreja Paroquial e o Palácio da Justiça. São construídos alinhados e voltados para noroeste. Na outra face da rua, em frente, não existem edifícios, mas tão somente um muro de arrimo, a fim de que não seja prejudicada a linda vista daí descortinável. Abaixo desse muro, sobre o declive da colina, existe uma praça, infelizmente muito irregular, cuja aterro é mantido por pedras soltas sobre o solo, formando tabuleiros dispostos em losango.
Para além da rua da Igreja, do Palácio, dos edifícios vizinhos dessa praça e das casas existentes mais abaixo avista-se o lago, que aparenta ter a mesma largura do Loire em Orleans, circundado de ilhas baixas e cobertas de vegetação pouco crescida. Entre essas ilhas veem-se serpentear os braços dos quatro rios supra citados, sendo impossível determinar com exatidão a que rio pertencem porque antes de chegar ao lago eles se cruzam e se confundem. As águas que se veem na direção do rio Gravataí, na extremidade mais oriental do lago, aí chegam descrevendo uma grande curva, apresentando-se como se fossem um belo rio distinto dos demais.
Os edifícios existentes no cume da colina não oferecem beleza independente da da situação. Pode-se mesmo O Palácio do Governador não passa de uma casa comum, de um andar e nove sacadas na frente. Mal dividido internamente, não possui uma só peça onde se possa reunir uma sociedade numerosa como a de Porto Alegre. O Palácio da Justiça é muito mais mesquinho ainda, térreo. A igreja paroquial, cujo acesso se faz por uma escada, tem duas torres desiguais; é clara, bem ornamentada e tem dois altares além dos que acompanham a capela-mor. Entretanto é muito pequena pois, segundo medi, conta apenas 40 passos da capela-mor à porta.
Muito menos importantes são os outros edifícios públicos de Porto Alegre. Além da igreja paroquial existem mais duas outras ainda não terminadas. Numa, contudo, já celebram missa, enquanto a outra, ainda não coberta, tem sua construção paralisada. A sede da Câmara não passa de uma casinha térrea, onde dificilmente se instalaria um particular medianamente abastado. Aqui a cadeia não faz parte da casa da Câmara, existindo duas muito pequenas situadas à entrada da cidade.
Na extremidade da rua da Praia existem dois prédios, vizinhos, servindo de armarem para a marinha, de depósito de arma; e onde se instalou, para as necessidades das tropas, oficina de armeiro, seleiro e carreiro. Causou-se admiração a ordem, o arranjo, diga-se mesmo — a elegância, reinante na sala destinada às armas de reserva.”
Sobre os habitantes de Porto Alegre disse que:
“se não há aqui tanta vida social como nas cidades europeias não resta dúvida haver muito mais que nas outras cidades do Brasil. São frequentes as reuniões nas residências para saraus musicais, tocando algumas senhoras, com maestria, o bandolim e o piano, instrumento este em geral desconhecido no interior devido às dificuldades de seu transporte.”
Sobre o mercado, assim resume o explorador:
“é na rua da Praia, próximo ao cais, que fica o mercado. Nele vendem-se laranjas, amendoim, carne-seca, molhos de lenha e de hortaliças, principalmente de couve. Como no Rio de Janeiro os vendedores são negros. Muitos comerciam acocorados junto à mercadoria à venda, outros possuem barracas, dispostas desordenadamente no pátio do mercado. Veem-se também aqui trapeiros pelas ruas. Atualmente vendem muito o fruto da araucária, a que chamam pinhão, nome semelhante ao das sementes de pinheiro na Europa. Usam-no cozido ou ligeiramente assado, ao chá, ou entre as refeições, sendo frequentes obsequiar com ele os amigos.
FONTE:
1Viagem ao Rio Grande do Sul / Auguste de Saint-Hilaire; tradução de Adroaldo Mesquita da Costa. – Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002, p. 50
2 Idem, p. 57
3 Idem, p. 58
4 Idem, p.64