Prefácio

O tradicionalismo gaúcho tem data de renascimento: foi em 5 de setembro de 1947, quando Paixão Côrtes e mais sete colegas do colégio Júlio de Castilhos percorreram sítios e chácaras da Zona Sul até encontrar cavalos e aviamentos necessários para formar um piquete que escoltasse os restos mortais do herói farroupilha David Canabarro. No final do desfile, que teve seu ponto alto quando os cavaleiros desfilaram pela Rua da Praia, o cordato Paixão perdeu a paciência quando um gaiato, de dentro de um carro, fez uma observação desairosa aos trajes gaúchos. Paixão galopou até alcançar o veículo, lanhando a lataria a golpes de rebenque. (Reportagem de Roberto Mendonça, jornal Zero Hora, de 04/11/1999)

Paixão Côrtes por Paixão Côrtes

Nasci em 12 de julho de 1927, em Santana do Livramento. Estou despontando os 85 anos. Meu pai, Julio Paixão Côrtes, era engenheiro agrônomo. Minha mãe, Fátima D’Ávila, era filha de João Pedro Rodrigues D’Ávila, fazendeiro, comerciante e líder ruralista. Meu pai era de Bagé, mas depois desenvolveu atividade ligada à área agropastoril na Secretaria da Agricultura do Estado. Em Santana existe até hoje o Rincão dos Ávila, no Cerro Chato. Os D’Ávila eram sesmeiros, chegaram àquela região antes da fundação da cidade. Nasci em casa.

Paixão Côrtes aos cinco anos.
Paixão Côrtes aos cinco anos

Éramos dois irmãos, eu e Maria Zulema, seis anos mais moça. Desde a infância, meu pai me levou a conviver com o meio rural. Tinha um Ford 1929 e ia, de fazenda em fazenda, para fazer seleção de rebanhos. E eu ia junto com ele. Sempre ouvi os problemas rurais. Isso foi até os meus 12 anos, quando fomos para Uruguaiana, onde meu pai foi diretor da Estação Experimental da Secretaria da Agricultura, na Campanha. Independentemente disso, havia o aspecto familiar. Meus tios eram fazendeiros. Ia para o Uruguai, para Rosário do Sul, convivia com peões, com as realidades diversas da estância. Na mesa da nossa casa, havia sempre carne de ovelha. Depois, como engenheiro agrônomo, me dediquei à ovinotecnia. Foi um caminho atávico. Meu pai era muito ligado à identidade da terra e às lideranças rurais. Não herdei a cultura urbana, e sim pastoril, rural, campeira. E isso permanece até hoje, me fazendo olhar sempre por essa ótica, que é das lembranças da infância

A dicotomia Campo X Cidade na sua juventude

Não existia demarcação, existia existência. O homem da Campanha e o homem da cidade eram um só. Porque a convivência do trabalho era no campo, mas as coisas da cidade eram decorrência natural da evolução, do desenvolvimento. Vivi a estância desde o galpão até a casa-grande. Hoje, existe campo e cidade. Antigamente, havia uma simbiose. Essa é a formação que eu tenho. Quando vim para Porto Alegre para estudar, senti uma falta imensa do meio rural.

Seus dotes artísticos

Minha família D’Ávila é toda de artistas, menos eu. (Risos.) Todos são músicos, cantores. Foi a necessidade que me obrigou a comunicar. Não é pretensão de cantor. Tem isso, não estão fazendo, eu vou dizer à minha moda. Vou fazer a minha parte. Agora, se está bem, se gostam ou não, eu não estou para conquistar uma posição. Estou para contribuir. Minha mãe tocava piano, violão e gaita. É herança mourisca. Eu estive em Ávila, na Espanha, trouxe o brasão da cidade. Isto aqui (aponta para a parte superior do rosto) tudo é mouro. Os Ávila são todos metidos a tocar. Agora fui lá numa fazenda e tinha uns 15, 20 Ávila tocando, tudo de campanha. As senhoras idosas me tirando para dançar no galpão! (Risos.) Eu louco de medo que elas caíssem, e elas loucas de medo que eu caísse! Esse meio artístico e cultural é de família.

Estudei piano por três anos com a dona Mosquita, professora de Santana. Herdei essa coisa natural. E foi em Santana que comecei minha vida artística sem saber. Fundei um conjunto folclórico, Amigos da Onça, em referência ao personagem do Péricles (chargista), para tocar só nos clubes e nas casas familiares. Tocávamos as músicas populares da época: rumba, chá-chá-chá, bolero, samba. Como eu, que tinha uns 18 anos, conhecia toda a sociedade, nas reuniões sociais, das 20h à 1h, ia ao microfone. Havia uma menina, Gessy, que era a gaiteira dos Amigos da Onça. Eu dizia: “Gessy, toca um limpa-banco aí, de campanha! Seu Fulano de Tal, vamos fazer um baile de campanha. Vamos tirar um par. Seu Fulano tira a Fulana, Sicrano tira a Beltrana! E agora para a direita, e para a esquerda, e desvirando!”. Eu comecei assim. Pegava toda a sociedade, dançava todo mundo.

Chegada à Capital

Não se podia usar bota, bombacha, lenço, guaiaca. A pessoa era presa. Não permitiam a entrada nos cinemas. Não havia reunião nos bares, não atendiam a gente. Então dissemos: “Não, para aí. Essas são as nossas origens, os nossos ancestrais. É a história vivida por nós, que nossos pais nos entregaram”. Então, fundamos o Departamento de Tradições do Colégio Julio de Castilhos. E decidimos fazer um troço de campanha. Não se podia comer churrasco. Era mal recomendado. Não existiam churrascarias. O churrasco, como degustação popular, pública, apareceu em 1935 na Exposição Rural do Centenário da Revolução Farroupilha, em Porto Alegre. Meu pai era coordenador da parte de pecuária, tinha selecionado os animais. Eu tinha sete anos e vim junto.

Os hábitos campeiros na antiga Porto Alegre

Quando terminou a exposição, apareceram uns gaúchos montados a cavalo. Isso não existia. Gaúcho era para estar lá fora, no galpão, na campanha. Chamava-se “cidadão” (o traje urbano): “Ele está de cidadão”. Bombacha era de campanha. Eram os “birivas”. Com chimarrão, não se chegava nem à janela de casa. Nem à porta. Estávamos saindo da ditadura (do Estado Novo, de 1937 a 1945). Era determinação, e cumpra-se, senão, é cadeia. Essa é a filosofia de uma ditadura: falta de direito da pessoa e de respeito a suas ideias. Não existia bandeira, não se podia cantar hino (dos Estados). Nem vestir. No vestir, não se precisa nem falar, a pessoa já se identifica. Mas essa era uma coisa subjetiva para nós. Decidimos fazer alguma coisa. Na escola, falar sobre sarcófago estava certo. Agora, laçar e pialar, que é isso? Por isso, criamos o movimento numa escola: por causa da educação.

Quando criamos o 35, começaram a surgir os poetas. No início, as reuniões eram na minha casa. Não tinha posses, trabalhava, tinha perdido meu pai, e minha mãe disse: “Não dá mais isso. É todo sábado”. Aí saímos, fomos para a Associação Riograndense de Imprensa (ARI), depois para o porão da casa de um colega na Rua Duque de Caxias. Num sábado, a polícia bateu lá, achando que era reunião subversiva. (Risos.) Ficamos uns três meses ou quatro, e a família não aguentou porque a fumaça subia para a casa. Fomos para a Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul), onde ficamos 10 anos.

Participação no Día de la Tradición Uruguaya em 1949

Montamos a cavalo, desfilamos, Lessa tocava gaita, outro, violão. Apresentamo-nos junto a uruguaios, argentinos e paraguaios. Eles nos olhavam e ficavam impressionados por sermos do Brasil. É que nós, gaúchos, somos regionais, e nos países platinos a figura do gaúcho é nacional. E um dia nos perguntaram: “¿Y que bailan ustedes?”. Essa foi a frase. Não tínhamos nenhuma dança. Outro dançava rancheira. Quando voltamos, Lessa e eu sentamos num bar, e eu disse: “Lessa, alguma coisa está mal. Como é que o Uruguai e a Argentina têm tudo isso, e nós não temos nada?”.

Pesquisa sobre as danças gaúchas

Eu dançava chote, como danço até hoje. Outro dançava rancheira. Procuramos nos livros. Cezimbra Jacques escreveu que o gaúcho dançava, puxava o sapateio e não sei o quê. Mas onde é que está? Então decidimos procurar e fazer fichas. Fizemos levantamento de tudo que tinha sido publicado, mas não sabíamos como dançar. Fomos para o Interior, por conta própria. Eu chegava a um bolicho, puxava conversa e alguém dizia: “Mas aqui tem um velho que toca muito bem”, “Lá na beira do mato tem um senhor que eu vi sapatear um dia numa festa”. Imagina o questionário que a gente fazia. Às vezes, o depoente nos olhava atravessado. “O que esse cara quer saber da minha vida?”. Até que o sujeito se levantava e fazia o passo da dança que conhecia. No início, eu não tinha nem gravador. Depois, levava um gravador antigo, que pesava 10 quilos, emprestado pelo professor Ênio Freitas de Castro, do Instituto de Belas Artes. Era gravador com fita de papel. Qualquer coisa, rompia e tinha de emendar. Depois de gravar, era preciso voltar a fita para ver se tinha ficado registrado. As pessoas ouviam e diziam: “É isso mesmo! É certo o que esse senhor está dizendo”. E ele mesmo tinha dito! (Risos.)
 

Em 1949, fui estudar com Ney Azevedo, meu colega na Faculdade de Agronomia, e cheguei atrasado em função de uma atividade do movimento. Ele me perguntou: “Tu estás procurando dança como o pezinho?”. “Que pezinho?” “O pezinho, que a gente dança lá no Litoral. Na beira da praia, a gente toma umas caipiras e dança o pezinho.” Em março de 1950, pegamos um ônibus do CTG 35 e fomos a Palmares do Sul, eles dançaram e nós registramos. Se a 80 quilômetros de Porto Alegre se dançava o pezinho, o que dirá nesses rincões perdidos. Começamos a sair todo final de semana, tudo por nossa conta. Um informava de uma maneira, outro, de outra, e aí verificávamos se havia contradição ou somatório. Começamos a estudar detalhadamente cada dança para concretizá-las, aprendê-las, classificá-las e torná-las pedagógicas. Nem a Faculdade de Educação Física sabia do que se tratava. Não inventei nada. Apenas transportei a fonte informativa a fim de dar unidade à matéria e, consequentemente, ser fiel às origens. Meu objetivo foi preservar o aspecto cultural, e não simplesmente o de execução coreográfico-musical. Não inventei nada.

Em 1955, a cantora Inezita Barroso gravou um disco de 10 polegadas chamado Danças Gaúchas. No acompanhamento, estava o Grupo Folclórico Brasileiro de Barbosa Lessa. Foram gravados pezinho, maçanico, anu, balaio, chimarrita-balão, quero-mana, tirana-do-lenço e meia-canha serrana. Também em 1955, foi editada pelos Irmãos Vitale uma primeira versão do Manual de Danças Gaúchas como suplemento ilustrativo, com as ilustrações. Depois, saíram duas edições só com texto, já em 1956. Tivemos de ceder os direitos autorais aos Irmãos Vitale para que pudéssemos imprimir o livro com texto e ilustrações. Criamos uma metodologia para poder ensinar as danças. Foi uma dificuldade enorme que tivemos para definir essas danças em suas expressões corporais, vocais e instrumentais acessíveis aos pedagogos. O livro foi reeditado oito vezes.

Cedemos os direitos aos Irmãos Vitale para poder publicá-lo. Aqui, nunca ninguém se interessou. Recentemente, fiz um livro com patrocínio de um CTG paraguaio e de catarinenses. Aqui, o Estado, por intermédio do governo estadual, publicou um livro meu.

Sobre a atual pesquisa

Tenho um título prévio: Dançando à Moda dos Antigamente. Tem danças inéditas. O movimento (tradicionalista) formalizou e limitou. Não expandiu e não está se renovando no conhecimento cultural e histórico. Está estabelecendo determinadas regras para concursos. Não participamos de concursos. Procuramos trazer o conhecimento da pesquisa documental para as escolas.

Depoimentos de Paixão Côrtes e outros
https://youtu.be/kZgrClC08n4
Paixão Côrtes canta e dança
Programa Galpão Crioulo da RBS/TV, ano de 2002

FONTE: Depoimento ao jornalista Luiz Antônio Araujo, publicado na edição de 30 de junho de 2012 do jornal Zero Hora

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